Desce mais uma...marca genérica!
O que os bares podem ensinar às marcas sobre o respeito ao local
POR
João Raia
·
10 min
Tudo meio igual
Tem uma coisa que anda me inquietando muito nos bares que tenho visto por aí. Não aqueles bares chiquetosos que cobram o olho da cara por um drink. Mas o famoso bar brasileiro, o "copo sujo", o "bar da esquina", o "do seu Zé".
Você anda por aí — e todos parecem iguais, já reparou? Ao menos por fora, é sempre a mesma placa padronizada por uma marca, mesmo letreiro plastificado com fonte sem graça, mesmas cores. Não importa se você está em BH, Salvador, São Paulo, Pará ou em qualquer grande capital: o boteco parece sempre o mesmo. A marca chega, pinta a fachada, entrega os materiais promocionais, padroniza o balcão. E pronto: aquilo que antes era uma expressão do lugar se torna uma unidade replicável. Como se uma parte da cultura fosse somente ponto de venda.
(E, tenho certeza, que se você como eu, também já morou no interior, sabe que bar que é bar não é asséptico, saído de um manual de marca; cada um tem uma coisa pra chamar de sua, seja um petisco, um atendimento diferenciado, um tipo de conexão afetiva). E como um bom mineiro (pelo menos de escolha), essa observação atenta dos bares (um lugar tão importante da cultura brasileira) me fez pensar em uma coisa mais ampla: qual a relação que as marcas têm com o local, com o "regional" (e, no fim das contas, é regional pra quem?)
Sempre achei que, pra quem trabalha com branding, essa homogeneização imposta pela marca deveria acender um alerta. Porque quando marcas aplicam sua identidade de forma achatada, ignorando o território onde estão inseridas, elas não estão necessariamente ganhando presença — estão perdendo oportunidades e relevância de estabelecer vínculos mais significativos com as comunidades. Estão confundindo visibilidade com conexão. Será mesmo que não tem um jeito mais interessante de criar uma ativação de PDV pra um bar que não seja somente envelopar ele com algo sem graça, sem alma, sem brasilidade?
Claro que existe um lado prático e racional nesse tipo de abordagem: é mais barato, mais ágil, mais escalável. Logística, padronização de materiais, controle de execução — tudo isso pesa. Mas o que parece vantajoso na planilha pode sair caro na percepção. O investimento em uma identidade genérica pode, no fim, ser um investimento "burro": porque economiza no design e perde na conexão. No ROI simbólico, a conta não fecha.
Como ocupar, então?
O ponto aqui não é demonizar a presença das marcas em espaços populares. É questionar a forma como essa presença acontece. Existe um abismo entre ocupar e pertencer. E muita marca ainda insiste em invadir, sem entender o que está em jogo. Ora, estratégia de ocupação não pode significar apagamento da cultura local. Porque lugar tem sotaque. Tem ritmo. Tem códigos. E se a sua marca não for capaz de dialogar com isso, ela vai ser percebida como uma intrusa, não como parte do cotidiano.
É o mesmo erro que vemos em campanhas sazonais, como no São João: quando a marca entra apenas pelo figurino — bandeirinha, chapéu de palha, xadrez — ela reduz uma manifestação complexa a um visual genérico. (Eu já até falei disso em uma postagem) Esquece que cada símbolo tem origem, contexto, função social. Não é só cenário, é sustento, é rito, é sistema.
Eu sei: o Brasil não é um mercado homogêneo. É um ecossistema de múltiplas culturas, linguagens e hábitos de consumo. Mas, por comodidade ou desconhecimento, muitas marcas ainda tratam esse país como um só. Investem em uma linguagem "neutra" (que, na prática, vamos combinar) reforça um padrão sudestino de estética, vocabulário e sotaque) e acreditam estar criando identificação nacional. É o que a gente chama de falácia do "sotaque Globo": um padrão que se impôs como universal, mas que exclui qualquer outra forma de expressão, tentando criar uma ideia de que é possível criar marcas sem sotaque. E branding precisa ser ferramenta de amplificação da cultura local — não de sua padronização.
Quando falamos de sotaques de marca, não estamos falando só da forma de falar. Estamos falando do jeito de se comportar, de narrar histórias, de se posicionar no mundo. Uma marca com sotaque é uma marca que tem identidade, território e contexto. E aqui não se trata de criar uma caricatura daquele lugar: trata-se de coerência. O problema não é a marca não ser "do lugar", é fingir que é, sabe? E passar a ser lida como uma impostora. E a marca impostora não é aquela que vem de fora, mas a que não reconhece de onde fala.
Casos como o da campanha "Vivo o mundo, sou Minas Gerais" mostram que é possível fazer diferente. A Vivo não tentou simular mineiridade, ela construiu uma homenagem, ativando elementos legítimos do cotidiano, da música e do ritmo local, sem tentar se apropriar deles como se fossem seus. E isso fez sentido dentro da plataforma da marca — que trabalha a ideia de conexão, presença e, no caso específico de Minas, retoma um elo simbólico com a antiga Telemig, trazendo também um componente histórico e afetivo. O GNT, por sua vez, deu um passo relevante ao trazer uma voz nordestina para sua locução oficial, desafiando a lógica histórica da televisão brasileira — e também alinhando isso com um portfólio de programas que desde sempre tem a brasilidade (especialmente do Nordeste) como um de seus eixos culturais.
Outras formas de fazer
Para isso, a organização da marca precisa se abrir para outras formas de saber. Times de branding centralizados, sediados no eixo RJ-SP e distantes da vivência cotidiana dos territórios, tendem a tomar decisões a partir de um repertório limitado. Inserir inteligência local nos processos não é apenas uma questão de diversidade: é uma estratégia de sobrevivência. Significa incluir olhares regionais desde a concepção do briefing, envolver especialistas do território, permitir que o discurso da marca se transforme com aquilo que encontra pelo caminho. Branding não é imposição: é tradução.
Isso também exige que a marca abandone o fetiche da estetização do Brasil. Existe uma tendência publicitária de transformar qualquer traço cultural em adornos para a próxima campanha. Mas um elemento simbólico fora de contexto é só enfeite. E enfeite, sem raiz, quebra na primeira ventania. O Brasil real é mais complexo, mais contraditório e mais potente do que qualquer clichê visual pode dar conta. E talvez o papel das marcas seja menos o de ilustrar o Brasil e mais o de sustentá-lo.
Mas aí você pode perguntar... então tá, mas como criar para marcas nacionais, então? Se a localidade exige conexões mais profundas, não consigo me conectar com todo mundo ao mesmo tempo... é preciso um certo grau de genericidade, não? O desafio de marcas nacionais é entender que crescer não é diluir. Crescer é complexificar. Em vez de buscar uma identidade única que sirva para todo o Brasil, talvez seja hora de pensar em plataformas de marca que permitam variações legítimas. Uma marca forte não é a que impõe uma linguagem única, mas a que sustenta múltiplos sotaques com coerência. E isso exige estrutura, governança e inteligência cultural.
Sem ser impostora
A chave talvez esteja menos em "representar" e mais em "reconhecer". Muitas marcas caem na armadilha de querer ser a voz de uma comunidade, quando, na verdade, bastaria mostrar que escutam. Ninguém espera que uma marca fale como um nativo. O que se espera é que ela não finja. Que não entre num território usando palavras que nunca usou, tentando forjar uma intimidade que não existe. O consumidor percebe esse descompasso. O que era pra ser conexão vira constrangimento. A tentativa de criar identificação se transforma em ruído simbólico.
Isso também demanda um olhar mais atento para os processos de branding e expansão. Quem está tomando as decisões? De onde essas decisões estão partindo? No caso das festas juninas, por exemplo, vimos marcas que acertaram ao co-criar com artistas locais, como a Natura ao trabalhar com Mellina Farias. Outras foram além do visual e ativaram o ecossistema da festa, como a Quero, que estruturou barracas para empreendedores locais. Esses movimentos mostram que presença com respeito não é apenas viável, é desejável.
Por isso, quando penso nos bares padronizados, não vejo só um problema de visual. Vejo um problema de escuta. De branding. De estratégia. Porque, no fundo, a pergunta que fica é: você quer ser lembrado como uma marca que pintou a fachada ou como uma marca que soube construir presença onde ninguém mais estava olhando?
O branding do futuro vai ter que aprender a conviver com as diferenças e, mais do que isso, a valorizá-las como potência. E talvez a primeira pergunta que toda marca deva se fazer seja essa: se eu tivesse meu nome estampado no bar da minha rua, eu teria orgulho da história que ele conta? Ah, e se você não sacou...esse artigo não é sobre bares.




