Brasil, mostra sua cara!
O que a nossa relação com as novelas têm a ensinar às marcas
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João Raia
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10 min
Eu sempre fui noveleiro. Do tipo que lembra abertura, música, vilã, bordão. Cresci vendo novela em casa e me apaixonando pelas histórias muitas vezes alheias à minha vida, mas extremamente brasileiras. Morria de medo do Cadeirudo. Fiquei vários dias me perguntando Quem matou Lineu. Me divertia horrores com a Nazaré. Tive a alma lavada quando a Maria Clara deu uma surra na Laura. E incorporei muitos (até demais) bordões na minha vida. Mas eu gostava. Ainda gosto, pra ser sincero. Só que tenho me cansado. E não é só porque hoje a gente consome séries mais curtas e a novela vem com 200 capítulos. É porque a lógica mudou. A nossa, e a dela.
Outro dia, num grupo focal com mulheres do Brasil todo, joguei a clássica pergunta pra quebrar o gelo: “Vocês podiam se apresentar, dizer de onde são... e também quem vocês acham que matou Odete Roitman”. Silêncio. Ninguém tava vendo Vale Tudo. Ninguém se importava. Todo mundo já tinha ouvido falar, visto a publi ou o hype. Mas assistir mesmo? Quase ninguém. A emblemática Odete virou meme, virou discussão de agência, virou tema de inúmeras conversas das marcas — mas não necessariamente virou audiência, ao menos não universal. E é aí que mora a provocação: novela ainda é um terreno fértil pra entender o Brasil, só que a estrutura mudou. E quem continuar usando o antigo manual vai bater cabeça.
No LinkedIn, todo mundo mergulhou no óbvio: a avalanche de publis mal encaixadas. Teve app, creme, tinta, sabão em pó… tudo jogado em cena dramática como se ninguém fosse notar. Virou piada, trend, meme (Algumas delas bem mal colocadas - o que gerou até uma trend no X que fala "quando me perguntarem o que é um merchan bem feito, vou falar disso aqui", com várias cenas antigas de propagandas). Chegou a ter uma publicidade a cada 50 minutos de conteúdo, com textos engessados e zero sutileza. E eu vi várias análises bem interessantes sobre isso tudo - e até me questionei se não tá na hora da gente pensar mais em collab das marcas com as novelas e menos em publis forçadas na trama? #ficadica
Mas vi pouca gente falando sobre um ponto que me interessa mais: o que as novelas dizem sobre o comportamento do brasileiro — e o que as marcas podem aprender com isso. Porque novela ainda é um espelho. Embaçado, às vezes torto, mas espelho. E a forma como a gente se vê nele mudou.
A novela é coisa nossa
A primeira coisa que não dá pra esquecer é que novela é um patrimônio simbólico e cultural do Brasil e do brasileiro. Vendo ou não vendo novela, ela fez parte da nossa construção cultural e identitária das últimas décadas. Não dá pra esquecer: novela ditava o que era moda (teve anel, gargantilha, roupa, bijus, etc), ditava a sina dos nomes das crianças que nasciam na época, determinava a trilha sonora da nossa vida (os 30+ vão lembrar dos CDs nacionais e internacionais que compilavam os sucessos que tocavam em todas as rádios) e gerava momentos icônicos (alguém lembra do "toda babada? em pleno horário nobre?); novela gera conversa e debate e trouxe muitos mundos diferentes pra nossa sala. Nos faz ver com uma certa empatia histórias que talvez a gente não buscasse conhecer.
Uma vez, a Fernanda Torres, numa entrevista ao Deadline, falou uma coisa que ficou martelando muito na minha cabeça. Foi na novela brasileira a primeira vez que a gente se viu na tela, representado, enquanto povo brasileiro. “Novelas nos viciaram em nós mesmos, ajudaram o Brasil a não ser tão colonizado por culturas estrangeiras. (...) Elas ensinaram o povo brasileiro a se assistir em português”
No fim das contas, a gente criou um jeito nosso de se comunicar - que traz algumas expectativas, inclusive, do que é uma boa novela (não por acaso, não sei se vocês repararam, mas as últimas novelas - Beleza Fatal, Vale Tudo e Três Graças têm sido vendidas como "novelão"): vilões caricatos, bordões inesquecíveis, exagero, humor, cotidiano, melodrama E isso tudo criou um modo de fazer novela que é só nosso, com nosso tempero (e que não dá pra comparar com doramas coreanos ou as novelas mexicanas). As novelas ressoam com a nossa forma de viver, falar, exagerar, rir de si mesmo.
Entender e respeitar esse DNA talvez seja um dos aspectos mais cruciais pra criar uma novela que faça sucesso (não um sucesso comercial, de publis fechadas, mas de se tornar parte da cultura brasileira, na rua, no boteco, na igreja). Luiz Antonio Simas, um dos historiadores que têm uma visão muito interessante e bem da rua sobre o Brasil, sempre escreve algumas crônicas e textos em que as marcas aparecem como parte da nossa história e memórias coletivas, da nossa paisagem emocional, cultural e afetiva do Brasil. Assim como as novelas deixam marcas na nossa cultura (até hoje, vários brasileiros falam "Inshallah, Muito Ouro!" pra brincar quando alguém tem muito dinheiro; ou repetem bordões famosos como "Eu sou rica!" ou "Gostosa...o tempo só te valoriza"), marcas viram linguagem, viram memória, viram referência geracional.
E é aí que mora a força de uma marca brasileira de verdade: na sua capacidade de marcar, de permanecer, de virar “coisa nossa”. Trabalhar com um ícone e símbolo cultural forte é bem complexo e desafiador - e muitas marcas sofrem justamente com isso. Como respeitar a tradição e o DNA e inovar? Como contar histórias que mexem os ponteiros da vida real, de verdade?
As histórias que mobilizam o Brasil não são necessariamente realistas ou moralistas — são exageradas, afetivas, contraditórias. A gente aprendeu que nem toda comunicação precisa ser “edificante” — pode ser envolvente, exagerada, dramática, divertida. O brasileiro gosta de personagens “bons de história”.A novela ainda é uma lente poderosa para entender os brasileiros. Ao observar como o público reage a essas narrativas, as marcas podem afinar sua escuta, sua linguagem e seus territórios de comunicação.
E o ritual?
Durante muito tempo, a novela foi um dos rituais mais coletivos que a gente teve no Brasil. A família toda sentada na sala, a vizinha comentando no dia seguinte, o país inteiro reagindo ao mesmo tempo à morte da vilã ou à redenção da mocinha ("vocês não sabem o prazer que é estar de volta!"). Era uma liturgia laica que dava um senso de pertencimento.
Hoje esse ritual tradicional tá em uma espécie crise. A novela perdeu o trono pra múltiplas telas, pra lógica do on demand, pra nossa pressa. O mercado fica discutindo se 30 pontos no Ibope é um sucesso ou um fracasso enquanto as pessoas estão buscando intensidade em 15 segundos. A galera quer mais é plot twist no primeiro episódio e comentar no Twitter em tempo real, pra fortalecer esse senso de comunidade que antes estava só na sala de casa.
No fim das contas, o brasileiro não parou de consumir novela — só passou a consumir do seu jeito, no seu tempo, no seu lugar. Ou seja: a novela ainda existe, mas em outros formatos, com outras linguagens, em outros tempos. Sai o horário fixo da sala de estar, entra o corte vertical no celular. O público não necessariamente quer menos novela - mas quer que esse patrimônio encontre novas formas de falar do Brasil, um desafio similar de muitas marcas.
Você já ouviu falar de A Vida Secreta do Meu Marido Bilionário? Pois é... talvez você se surpreenda com o alcance de um novo tipo de novela brasileira (assim como eu me surpreendi) Uma novela lançada em um formato diferente, na pegada TikTok, atingiu milhões de views. As novelinhas verticais são gravadas em uma semana, com roteiro improvisado, uma estética “meio zoada” e enredo dramático - até caricato e, por vezes, rocambolesco e absurdo. Mas fazem sucesso. Há valor na “panela velha” — formatos improvisados às vezes conectam melhor do que a produção premium da Globo, muitas vezes asséptica demais. Pra quem trabalha com marcas no Brasil, a gente precisa sempre se relembrar que o medo do imperfeito é inimigo da autenticidade. Às vezes, um vídeo simples, sincero, com falhas, conecta mais do que um comercial polido.
Porque são do povo, com o povo, pro povo. Porque falam a língua da quebrada, da correria, do agora. Se você der uma olhada nas redes sociais, verá “resumos”, cortes, reações em meme. E isso também é novela. E isso também é brasilidade. E isso também pode ser branding.
No fim das contas, a marcas precisam lembrar que o formato importa tanto quanto conteúdo. Não adianta adaptar só a mensagem; precisa adaptar o tempo, o canal, o ritmo. Mas, mais do que isso, é preciso entender os novos rituais - ou a evolução deles. Dar algo como certo é falhar em entender e acompanhar o espírito do nosso tempo; é correr o risco de se tornar caricato e estereotipado.
Mas a gente ainda se mobiliza por histórias potentes
Mesmo com toda transformação, é inegável o nosso poder de mobilização como povo (as redes sociais e os "Come to Brazil" pras estrelas gringas mostram, sem dúvida, nosso poder) e isso sempre capturou as ambições de quem trabalha com marca, né? Como eu faço pra que eu seja o tema da conversa. É possível parar o Brasil?
Eu acho que a gente ainda se mobiliza por histórias fortes, mas também é preciso um certo nível de ousadia e uma leitura mais interessante do contexto. A protagonista de Beleza Fatal era uma mulher preta, uma vilã bissexual, complexa, completamente fora da casinha. A novela foi um sucesso. Não por ser somente atual. Mas por ser real de uma forma interessante. Por entender que o Brasil é feito de contradição, de microculturas e por explorar um aspecto lúdico que se conecta ao DNA do novelão que fazia com que a gente ignorasse os furos de roteiro e barrigadas, tudo pelo próximo meme ou bordão. O sucesso foi tanto que a HBO teve que mudar sua estratégia e exibir o último episódio depois do previsto, pra dar tempo de todo mundo se atualizar e ver juntos. Como um jogo de futebol.
Vivemos fenômenos de mobilização cultural também fora da novela clássica: pense no Oscar da Fernanda Montenegro, nos momentos de polarização de BBB (ex: Manu x Prior) ou nas reações nacionais a séries que mexem com identidade coletiva. Sim, claro que temos espaço pra nos mobilizarmos coletivamente. Mas a gente cansou de ver as mesmas histórias. "Eu vejo o futuro repetir o passado" e isso já não garante sucesso. Há novas histórias que são relevantes; o desafio é encontrá-las e contá-las com coragem - veja por exemplo, o sucesso de Pablo e Luisão (já falei uma vez e vou falar sempre o quanto Paulo Vieira é um gênio de se conectar com o que é mais brasileiro da gente). Justamente por que conexão real exige evitar estereótipos e abordagens superficiais.
Como um cara gay que cresceu vendo novela, a falta de representatividade sempre foi algo que me marcou muito. Os únicos personagens gays que apareciam nas novelas eram caricatos, estereotipados e só serviam de alívio cômico. Não tinham vidas, conflitos - e muito menos afetos. Por anos, a gente torceu pelo beijo gay na tela da tevê, no meio desse povo, pra gente se ver na Globo. Enquanto ele não acontecia, a gente era inundado com sexo, violência, assassinato...mas o beijo era demais. Avançamos na representatividade - do beijo de Félix e Carneirinho até agora, fomos descobrindo novas histórias e perspectivas. O público brasileiro - sempre lembrando, conservador - se apaixonou por Kelvin e Ramiro e vibrou num casamento homossexual na novela das 9. Isso mostra que o público quer protagonismo, pluralidade, empatia — mas não quer rótulo barato.
Escrever em um briefing ou tentar artificialmente criar um "momento de parar o Brasil" somente levando em consideração o que já foi feito antes não considera um aspecto interessante da identidade do brasileiro: nós somos múltiplos, contraditórios e imprevisíveis - mas, acima de tudo, somos passionais e nos importamos. Nos mexemos pela emoção - e quanto mais profunda e coletiva, melhor. A narrativa importa, mas precisa estar conectada ao sentido do momento.
Marcas que ainda operam na lógica do “parar o Brasil” com uma única campanha massiva precisam rever a estratégia só tentando surfar no hype não entenderam muito o espírito do brasileiro. Não é que o ritual morreu. Ele só mudou de roupa. E de canal.
A crise da fórmula e o medo da escuta
Tentar reviver o sucesso do passado com a mesma receita é uma armadilha comum. Vale Tudo até tentou. Mas vamos ser honestos? Pra mim, fracassou. Saindo da nossa bolha em que a novela foi tema constante e presente nas propagandas, não dá pra ignorar que o remake foi criticado por ser confuso, caricato, fora de tom. E, mais do que isso, por não escutar. A roteirista ignorou as críticas, mudou e atualizou sem respeitar muito a obra original - e esquecendo que, em um remake, a comparação era inegável. A rapidez com que cenas da versão original iam pras redes sociais pra se comparar ao que estava no ar agora era impressionante. Isso é sintoma de quem acha que nostalgia basta. Nostalgia não percorre o caminho sozinha. Se você não atualiza o tom, não entende o contexto novo, não escuta as pessoas, acaba soando deslocado.
Marcas fazem isso o tempo todo. Tentam atualizar o logo, a campanha, o tom de voz — mas sem escutar de verdade. Fazem pesquisa só pra validar o que já decidiram. Não criam com as pessoas. Criam para elas. Tentam só surfar qualquer onda que esteja acontecendo - de um morango do amor a bebês reborn - coisas que em um mês, ninguém vai lembrar e que, não necessariamente, gera valor e conexão com as marcas. Porque o hype pelo hype é ruído. É todo mundo gritando na feira. E aí não conecta.
Respeitar as origens e as histórias das marcas é sempre um bom primeiro passo. Não à toa, quando vemos projetos grandões, muitas marcas acabam mergulhando no seu próprio passado, na sua história, pra buscar reencontrar a essência. Mas fazer isso no vácuo, só olhando pra si, de uma forma ensimesmada, sem considerar contexto e a vida real das pessoas, tende a criar marcas desinteressantes. Às vezes, lindas. Mas sem vida de verdade.
Novelas e marcas boas não são só bem escritas. São bem ouvidas. São feitas com o público, com timing, com afeto, com abertura. Ignorar feedbacks, seguir o plano fechado — é receita para possíveis crises ou pior, pra irrelevância. E tudo isso vale pra pensar e construir estratégias de marca. A gente sempre precisa lembrar que atualizar não é reciclar. É rever, ressignificar, readequar.
O Brasil não é fórmula. É contexto.
Tem algo de muito simbólico em ver tantas marcas apostando na nostalgia como salvação. Como se reviver o passado fosse garantir conexão no presente. Mas o Brasil mudou. E os signos que nos emocionam também.
Por muito tempo, os evangélicos eram retratados nas novelas da Globo de uma forma achatada e superficial - muitos desses consumidores migraram pra novelas bíblicas da Record, por exemplo. Aí, uma novela das 7, Vai na Fé em 2023, conseguiu trazer uma luz diferente pra esse segmento (que representa quase 1/3 da população brasileira, não podemos esquecer) e capturar atenção nova: uma protagonista negra e evangélica sem aquele estereótipo batido, ambientada em um Brasil real, dialogando com gente de fé e com dúvidas internas e que vencia preconceitos e expectativas. É óbvio, mas é importante lembrar: as pessoas estão sempre mudando.
Quem não se lembra que as atrizes que faziam as vilãs apanhavam (literalmente) nas ruas? O contexto mudou: Odete foi aclamada como diva sensata (mesmo falando absurdos). Isso pode chocar muita gente, mas é importante lembrar das bases que fazem nosso país (e dar uma olhadinha nas disputas políticas, nas conversas que permeiam o Brasil Real). Pra quem tem dúvidas, recomendo muito o Brasil no Espelho, estudo da Globo Gente, que expõe as nossas contradições mais estranhas. Criar sem entender isso é criar utopias.
Entender contexto é entender também que, às vezes, as paixões que nos movem não são necessariamente boas. Muita gente foi movida pela raiva de acompanhar Vale Tudo "poxa, estragaram a novela", mas com um sentimento misto igual de "mas agora também quero ver o que vai acontecer". Saiu até matéria falando sobre hate-watching (ainda que eu prefira chamar de o bom e velho "na força do ódio"). De gente que tava vendo a novela só pra comentar no grupo e zoar os absurdos. Só pra fazer meme. E a gente faz isso com novela, com marca, com político, com tudo.
Quem trabalha com marcas, em algum momento, já se deparou com o paradoxo do "fale mal, mas fale de mim". O problema é quando a marca confunde buzz com afeto. E acha que ser comentada é o mesmo que ser amada. E engajamento sem carinho vira cinismo - e cinismo não constrói valor de marca, né? As marcas precisam acompanhar esse movimento: não basta ter um herói e um vilão na sua história. O consumidor de hoje valoriza camadas, nuances, zonas cinzentas. O real não é preto no branco — é ambíguo, contraditório e vivo.
E o que isso tudo tem a ver com brasilidade e com construção de marca?
Tudo.
Novela é, talvez, o maior artefato cultural da nossa brasilidade. É onde a gente se vê, se fantasia, se irrita, se emociona. É onde surgem os bordões, os apelidos, os memes, os afetos. É onde o Brasil se constrói em imagem e som. Boas histórias precisam de contexto. De localidade. De sotaque. De referência. E isso vale pra marcas também. O brasileiro reconhece o que é dele — e rejeita o que vem de cima pra baixo. A marca que só quer “contar a sua história” sem ouvir a do outro não vai se conectar. As melhores histórias hoje são aquelas contadas com, e não só para, as pessoas.
Entender novela é entender o Brasil. E entender o Brasil é entender que os signos não são universais. Que cada detalhe comunica: o jeito de falar, a trilha sonora, a vila, o sotaque, o figurino. Marca que ignora isso corre o risco de parecer estrangeira dentro da própria casa.
No fim das contas, talvez a grande lição seja essa: o Brasil não quer só ser representado. Quer ser escutado. Quer rir, chorar, reclamar e amar junto. E é aí que mora o poder da novela — e o potencial desperdiçado de muitas marcas.
Se você quer construir marca no Brasil, pare de olhar só pra fora. Escute a novela. Escute o mercado. Escute o povo.
A resposta tá no capítulo de hoje. Não no remake de ontem.




