“Isso é muito Brasil” - Decodificando a brasilidade pras marcas (Parte 2)
Como decodificar signos de brasilidade pra criar marcas brasileiras conectadas com as pessoas
POR
João Raia
·
10 min
Criar marca no Brasil é um exercício de humildade. Porque, por mais que a gente tenha um monte de modelinho pronto, importado de fora, ideias e sacadinhas geniais, cases internacionais e discursos de tendência na ponta da língua, tem uma hora que a teoria não dá conta da vida prática e real. O que funciona no papel às vezes trava na boca do consumidor. O que parece criativo, esbarra num ruído. O que soa estratégico, é lido como oportunismo.

Uma plataforma de marca precisa entender onde pisa, com quem fala, o que mobiliza, o que comove — e o que repele. E isso não se aprende só com slide ou benchmark do concorrente que também tem uma cultura gringa. Aprende-se com repertório, com escuta, com presença de fato. Aprende-se observando o fiado, o culto, a estética do salão de bairro, a gambiarra do dia a dia, o desejo de conquista estampado em cada novo eletrodoméstico na sala. Aprende-se consumindo o Brasil, não apenas formatando-o. E talvez esse seja o grande dilema de quem constrói marca no Brasil: como criar algo com verdade se a base é feita de referência importada que não se conectam com o Brasil de verdade?
Não estamos dizendo que não se pode olhar pra fora: o problema é fazer isso sem passar pelo filtro do Brasil. Sem digerir, misturar, reconfigurar. Porque, no fundo, marca é antropofagia: é o que você consome, mas também o que você transforma.
E é aí que entra a ideia de brasilidade. Não como recurso visual, mas como estrutura de pensamento. Não como briefing temático, mas como território simbólico. Marca brasileira precisa digerir o mundo com estômago brasileiro. Precisa saber o que engole, o que cospe, o que mistura. Isso é antropofagia, e isso é branding.
O problema é que, hoje, boa parte das decisões de marca são tomadas em um ambiente esterilizado, com bolhas pré-formatadas, com gente que valoriza muito mais o que rola num SXSW ou em Cannes do que algo que se conecta com nossos desafios. E, pior, com pouco tempo de imersão, pouco dado cultural, pouca escuta local.
E aí, a gente queria fazer algumas perguntas pra você, estrategista de marca:
Quando foi a última vez que você viveu o Brasil de verdade? Que foi pra lugares que não conhecia e conversou com aquelas pessoas que, normalmente, você não conversaria?
Como construir um posicionamento com profundidade simbólica se a gente não reconhece os códigos que realmente movem as pessoas?
Quando você usou uma referência nacional pra criar sua estratégia ao invés de se basear num talk gringo qualquer?
Quando você mergulhou, de fato, nos recortes de uma pesquisa pra entender de qual Brasil ela falava (e se falava realmente do Brasil) antes de bolar uma ideia?
Como criar linguagem se a gente desconhece o sotaque? Como escolher cor, tom, voz, se a gente não entende o que comunica ou o que fere?
"O Brazil não conhece o Brasil"
Talvez essa frase caiba como uma luva pra quando pensamos em estratégias de branding. Uma coisa que a gente tem observado bastante no mercado é como muitas marcas brasileiras se descrevem quase como se fossem de outro lugar.
Falam em inglês. Têm vergonha do nosso jeito de ser. Apagam sotaques. Criam discursos engessados, como se profissionalismo fosse sinônimo de frieza, e inovação fosse incompatível com afeto. E, mais: têm dificuldades em entender que a brasilidade (e, portanto, a capacidade de entender, criar e se conectar com as pessoas) vai além dos estereótipos.
A metodologia que usamos na Compadre parte desse princípio: não dá pra projetar uma identidade se a gente não entende o chão onde ela pisa

Afeto, Crença, Ginga e Parceria não são apenas dimensões estratégicas: são formas de tradução. São mapas que nos ajudam a não tropeçar nas armadilhas do achismo. E são lembretes constantes de que, no Brasil, a lógica do consumo e do pertencimento não segue o manual da lógica de marca gringa. É sempre bom lembrar: Plataforma de marca não é só um mapa de mensagem. É um projeto de identidade. E identidade, pessoal, não se terceiriza pro algoritmo.
Aí entra o nosso trabalho: escutar. Escutar o que a marca é e o que ela não está conseguindo dizer. Escutar o mercado, o consumidor, os colaboradores e o contexto. E decodificar símbolos e signos que podem ser usados como bons insumos criativos e estratégicos pra criar marcas mais reais. Na primeira parte do artigo, que você pode ler aqui, começamos a esmiuçar alguns desses sinais e tentar fazer sentido do nosso jeito e da nossa forma de ver, sentir e consumir o mundo. A gente sugere que você volte lá e leia!
O perigo de achar que o Brasil é um só
Uma das maiores armadilhas no discurso da brasilidade é tratá-la como uma coisa só. Um bloco homogêneo, indivisível, onde todo mundo pensa parecido, fala do mesmo jeito e consome da mesma forma. É tentador. Facilita o pitch, deixa o storytelling mais coeso, cabe na identidade visual sem muitos ajustes. Mas é também um erro estratégico. Porque o Brasil é feito de dobras, de contradições, de complexidades regionais, raciais, sociais, econômicas. E qualquer tentativa de achatamento gera ruído, ou pior, desconexão.
Quando marcas escolhem um ícone para representar a brasilidade, muitas vezes estão tentando resolver uma demanda legítima de conexão com o país. Mas se essa escolha não for acompanhada de compreensão, ela escorrega. E o que poderia ser simbólico vira estereotipado. O que deveria ser identificação vira caricatura.
Mais do que evitar o clichê, o desafio é entender o que há por trás dele.
Por que esse símbolo pegou? O que ele representa pra quem o usa? O que ele silencia? O que ele ilumina? Não se trata de cancelar signos populares, mas de usá-los com consciência, com contexto e com cuidado. Não é porque o meme é bom que ele cabe em toda estratégia. Nem todo estereótipo é ofensivo; alguns são apenas superficiais. E superficialidade, hoje, é um dos maiores riscos que uma marca pode correr.

Mas afinal, o que é essa tal brasilidade não óbvia? Parte 2
A brasilidade não óbvia tem a ver com fugir da superficialidade em entender comportamentos e signos que se conectam com os brasileiros. E, não... não estamos falando do "Brasil Profundo" (esse termo meio fetichizado que continua colocando o Sudeste como central e o restante do Brasil como "profundo", como algo a ser (re)descoberto, quase como uma nova expedição bandeirante, como algo mais "exótico" ou obscuro); estamos falando do Brasil Real. Aquele que pulsa nas veias e nas ruas.
As ruas são onde a marca ganha ou perde sentido. É lá que o bordão vira linguagem, que o produto vira comportamento, que o design vira gíria visual. As ruas não são só cenário, são laboratório, termômetro e palco. Ignorar o que acontece nelas é correr o risco de construir marca pra uma bolha que não representa o Brasil que vive, compra, cria e reinventa. É no chão quente do asfalto, entre a feira, o culto e o pagode, que as narrativas se comprovam. Marcas que escutam as ruas não precisam de tradução elas já falam a língua de quem importa. Aqui, alguns signos que pulsam nas ruas do Brasil afora.
O cuidado como prática relacional
Aqui, cuidar de si é também cuidar do outro. O “se agasalha”, o “leva um pedaço pra casa”, o “já tomou seu banho de sal grosso?”. O cuidado é coletivo, sensível e protetor. Ele é afeto em forma de gesto.
Marcas que falam de bem-estar, beleza e saúde precisam entender que o cuidado brasileiro é emocional e compartilhado. É sobre vínculo, não isolamento. Projetos que aproximam, acolhem e geram sensação de presença são os que realmente tocam.
A convivência entre opostos
Fé e deboche, luxo e improviso, dor e humor, pobreza e potência. O Brasil é um país de paradoxos que coexistem com naturalidade. A contradição aqui não é ruído — é ritmo. É o que faz a vida ter ginga.
Marcas que reconhecem e celebram essas ambiguidades se tornam mais reais. O consumidor não quer marcas perfeitas — quer marcas que entendem que a vida é complexa. A autenticidade mora no entre: entre o riso e o drama, o divino e o meme.
A musicalidade do cotidiano
O Brasil tem trilha sonora pra tudo: pra rezar, pra sofrer, pra trabalhar, pra amar. A música é a expressão máxima da emoção coletiva e do tempo vivido. Ela dá ritmo, organiza o caos e traduz o que as palavras não dão conta.
Marcas que exploram o som como linguagem sensorial criam conexões profundas. O ritmo é identidade. Usar o som, a voz e o silêncio de forma intencional é criar branding com emoção viva — porque, no Brasil, tudo é cantado antes de ser dito.
A sabedoria prática como fonte de autoridade
No Brasil, o saber legítimo não vem só da escola — vem da prática, da tradição oral, da experiência vivida. É o “aprendi com minha avó”, o “quem sabe faz”, o conhecimento que circula na feira, na igreja, no salão. Essa sabedoria é reconhecida socialmente e molda decisões, comportamentos e afetos. A autoridade aqui é menos currículo e mais vivência.
Marcas que valorizam esse saber prático ganham potência simbólica. Ao invés de falar de cima pra baixo, elas podem criar narrativas que celebram o conhecimento popular, a expertise não formal, o aprendizado do cotidiano. É na costureira, na rezadeira, no mecânico e no cozinheiro que mora muito do que forma o que o Brasil sabe — e confia.
A estética do improvisado-perfeito
No Brasil, o que é provisório muitas vezes vira definitivo — e isso não é descuido, é criação. A solução improvisada, ajeitada com o que tem, é um elogio à inteligência cotidiana. É o portão soldado com arame, a cortina adaptada com pregador, o móvel de caixote que vira design. Existe beleza funcional na gambiarra — e estética no improviso.
Marcas que reconhecem essa estética sem cair na caricatura conseguem se conectar com o que é real. Não é sobre simular pobreza, mas entender que o brasileiro valoriza o que resolve, o que é engenhoso, o que “ficou bom”. O improviso pode ser uma linguagem visual, um modelo de inovação e até um jeito de desenhar produto.
O desejo de respeitabilidade e a performance do “ser alguém”
A ascensão social no Brasil é uma performance contínua. Muita gente vive entre o “de onde veio” e o “pra onde quer chegar” — tentando equilibrar pertencimento com validação. Falar bem, se vestir certo, saber se portar, ser reconhecido como “alguém que venceu” é um desejo coletivo, muitas vezes silencioso, mas muito presente.
Marcas que compreendem essa ambivalência conseguem criar narrativas de empoderamento mais legítimas. Não é sobre glamourizar a meritocracia, mas dar espaço pra que as pessoas se vejam como protagonistas da própria história. Valorizar o esforço sem reforçar o elitismo. E entender que “aspiração” não precisa ser “distância”.
O valor do cuidado estético no cotidiano
Mesmo em contextos de vulnerabilidade, o cuidado com a aparência no Brasil é ritual de dignidade. A roupa bem passada, a unha feita, o perfume no fim do dia — são gestos de presença, de afeto com o corpo, de afirmação de si. Estética aqui não é futilidade: é identidade, autoestima e, muitas vezes, proteção.
Marcas que tratam o cuidado estético com respeito conseguem gerar conexão profunda. É diferente falar de beleza como padrão e falar de beleza como expressão. Quem entende que se arrumar pra ir à feira é tão legítimo quanto pra um evento social, cria campanhas que geram identificação real. A estética brasileira é afeto com forma.
O mundo é vivo
Em muitas cosmovisões populares brasileiras, o mundo não é um recurso a ser explorado, mas um organismo vivo com o qual se convive. Não há separação rígida entre o natural e o espiritual, entre o humano e o não-humano. Tudo carrega ânima: a terra, os bichos, os objetos, o tempo. Essa visão de totalidade cria relações de afeto e respeito com o ambiente que vão muito além do discurso ambientalista das marcas. A natureza aqui não é “cenário”, é parente.
Plataformas de marca que reconhecem esse modo de existir conseguem criar conexões mais profundas com pessoas que enxergam o mundo como um todo integrado. Isso exige rever não só as imagens utilizadas, mas o próprio discurso. Em vez de falar sobre o meio ambiente, que tal falar com ele? Marcas que entendem o território como sujeito e não só como espaço constroem uma presença mais respeitosa e legítima, especialmente quando atuam em comunidades.
A insurgência como ritual
Mesmo em universos marcados pela ordem, pelas regras e pelas tradições, sempre existe a fresta. A cultura popular é cheia de pequenos atos de desobediência simbólica, como quando se “ajunta com fé” sem casar, quando se muda o rito, quando se mistura santo e demônio, quando se dança o sagrado com cerveja na mão. Essas rupturas não destroem a estrutura: elas renovam o jogo. São brechas por onde entra o novo, o possível, o desejo. A rebeldia aqui não é ruptura total: é reinterpretação.
Para as marcas, entender esse movimento é chave. O brasileiro não vive apenas sob regras, vive entre elas. Entre o que se espera e o que se faz. Uma plataforma de marca relevante precisa respeitar os códigos, mas também reconhecer as dobras. Marcas que se colocam como parceiras na construção da vida real, com suas ambivalências, improvisos e reinterpretações , constroem valor simbólico de verdade. São percebidas como humanas, cúmplices e possíveis.
A ambiguidade como marca cultural
No Brasil, nem tudo é isto ou aquilo muitas vezes, é isto e aquilo. O sagrado convive com o profano, a reza com a gargalhada, a devoção com o deboche. Essa convivência com a contradição mostra que o imaginário popular brasileiro é feito de ambiguidade, humor, ironia e licença poética.
Plataformas de marca que tentam se construir só em cima de discursos “certinhos”, “coerentes”, “aspiracionais” demais, perdem conexão com essa complexidade. O consumidor brasileiro é multifacetado, cheio de contradições. Falar com ele exige aceitar o riso na tragédia, a beleza no caos, a devoção na dúvida. Marcas que sabem habitar a ambivalência criam vínculos mais verdadeiros e escapam da armadilha da persona publicitária perfeita e sem alma.
Isso é bem Brasil...
A real é que não dá pra pensar em marcas brasileiras com identidade sem entender os signos que moldam esse país. E isso não tem a ver com criar uma marca que vai sambar ou que vai usar as cores do Brasil - é sobre criar estratégias de conexão real. E pra você, o que mais é muito Brasil e que não pode ser ignorado pelos profissionais de marca nas suas estratégias?




