Sustentabilidade com S de Brasil
As marcas e a responsabilidade verde
POR
João Raia
·
8 min
Por muito tempo, associamos a pauta da sustentabilidade a um campo técnico e distante. Quem nunca imaginou (ou já fez) campanhas com aquela estética de um verde-vivo, das folhas translúcidas, dos gráficos em tons de azul e das campanhas que parecem reafirmar uma visão quase idílica e estereotipada do que é sustentabilidade. Uma ideia que reforça que "sustentabilidade é lá na floresta, não aqui".
Mas, hoje, São Paulo já não é mais a "terra da garoa", e sim dos alagamentos súbitos e das ilhas de calor. A floresta queima, a chuva some, o verão chega antes. E não há storytelling global que apague o fato de que o colapso ambiental deixou de ser previsão para virar experiência cotidiana — ainda mais dura para quem mora nas bordas.
Essa mudança de paisagem deveria obrigar uma mudança de linguagem. A sustentabilidade, no Brasil, precisa sair da abstração e ganhar corpo, cheiro e sotaque. Precisa ser traduzida a partir dos códigos que o brasileiro entende: o da urgência, sim, mas também o do afeto, da comunidade, do cuidado possível.
Não é que o brasileiro não se importe com o meio ambiente. Ao contrário. Segundo a pesquisa da Assobio, 89% da população brasileira diz se preocupar com o futuro da natureza e 94% se considera “ambientalmente consciente” . O problema é que essa consciência muitas vezes colide com as condições de vida. Como pensar em reciclagem quando o lixo nem sequer é coletado regularmente? Como escolher produtos orgânicos quando o preço do arroz subiu 30%?
É nesse abismo entre o ideal e o possível que se forma a verdadeira encruzilhada da sustentabilidade no Brasil — e é nessa encruzilhada que as marcas precisam aprender a operar.
A contradição não é falha, é condição
O brasileiro não vive uma lógica binária entre ser ou não sustentável. Ele improvisa, adapta, inventa. Sustentabilidade, aqui, é menos um comportamento idealizado e mais uma prática negociada com a realidade; é atravessada pela cultura da sobrevivência e pela estética da gambiarra. A mesma pessoa que planta tempero em garrafa pet é aquela que compra no mercado o produto mais barato, embalado em três plásticos. E não por falta de consciência, mas porque o orçamento não fecha.
Essa tensão também revela o quanto o consumo está no centro do debate. É impossível pensar sustentabilidade sem repensar a cadeia de consumo - e, com ela, o modelo de produção. Quando falamos de bioeconomia, não falamos apenas de novas soluções tecnológicas, mas da valorização de saberes ancestrais, do uso consciente dos recursos e da geração de renda a partir do que já existe no território.
A pesquisa Ta Quente Brasil! da Timelens aponta que práticas sustentáveis acontecem frequentemente no micro, no afeto, no corpo: reaproveitar roupas, reduzir desperdícios, cultivar alimentos. São ações pequenas, quase invisíveis para o branding convencional, mas cheias de potência simbólica. Em vez de ecoar um discurso de culpa, essas práticas reafirmam uma ética do cuidado possível, situada no cotidiano.
No entanto, muitas marcas ainda operam com o vício do moralismo importado. Disparam campanhas que colocam o consumidor como responsável único pelo colapso ambiental, quando, na verdade, ele é o elo mais frágil da cadeia. Isso não só é ineficaz como perigoso: contribui para o fenômeno do “cansaço verde”, onde a pauta ambiental é percebida como inalcançável, punitiva e fora da realidade .
Segundo o relatório ESG e Sustentabilidade no Brasil, 82% dos consumidores esperam que as marcas ofereçam alternativas de consumo mais sustentáveis, mas apenas 17% realmente confiam nas ações que essas marcas comunicam. O abismo entre expectativa e entrega nunca foi tão explícito.

O ESG virou commodity. E o branding não pode seguir pelo mesmo caminho.
O boom do ESG corporativo, como apontado no relatório da Ecoseletiva, levou a uma inflação simbólica da sigla: muitas vezes se fala em ESG para se esconder práticas contraditórias, ou para cumprir obrigações de compliance e reputação. O termo, criado para o mundo financeiro, foi sequestrado pelo marketing como atalho de propósito. Só que branding não se sustenta com fachada.
De acordo com a pesquisa, 47% das empresas brasileiras ainda não têm metas ambientais claras e apenas 26% realizam ações efetivas de neutralização de carbono . No entanto, quase todas elas comunicam alguma iniciativa sustentável.
Essa desconexão entre prática e discurso — o famoso greenwashing — já não passa despercebida. E num país com memória histórica de injustiça ambiental, isso tem consequências sérias. No Brasil, falar de sustentabilidade sem falar de território, de desigualdade, de raça e de acesso é esvaziar a pauta.
Mas, afinal, pra quem é a pauta da sustentabilidade? Pra todos, sim. Mas especialmente para quem tem mais impacto — e mais responsabilidade. É fácil apontar o dedo para as grandes corporações, para as marcas historicamente associadas à poluição, à monocultura, à exploração de recursos. E há críticas legítimas: como aceitar que empresas com histórico ambiental problemático patrocinem a COP30? A contradição existe.
Mas o debate não pode ser maniqueísta. A transição ecológica vai exigir participação ativa de quem tem capacidade de investimento, influência e escala. O problema não é essas marcas estarem na mesa. O problema é estarem só na mesa — e não nas práticas. Não basta assinar manifesto: é preciso rever modelo de negócio, cadeia de produção, governança. É aí que mora a transformação real. E é aí que o branding pode deixar de ser verniz pra virar estratégia de mudança.
Há ainda um segundo problema: a linguagem. O vocabulário ESG — com termos como net zero, offset, circularidade, biodiversidade regenerativa — não faz parte do cotidiano da maioria dos brasileiros. Para muitas pessoas, tudo isso soa como outro idioma. E é papel das marcas — sobretudo aquelas que se dizem comprometidas com o país — traduzir esses conceitos, aproximar as conversas, e criar caminhos de entendimento que não partam da superioridade técnica, mas da escuta ativa.
E se, em vez de salvar o planeta, a gente começasse cuidando da nossa rua?
Há uma lição importante no modo como o brasileiro se relaciona com o espaço que habita: ele cuida do que é próximo. O bairro, a rua, o entorno imediato. E talvez seja aí que esteja o maior potencial de engajamento em torno da sustentabilidade: na escala do possível. O brasileiro não se vê como protagonista da agenda global. Mas se vê como parte da sua comunidade, da sua quebrada, do seu bairro. Sustentabilidade, aqui, é quando o rio não alaga a casa. É quando a árvore da calçada não cai com o vento. É quando a comida não falta no prato.
É nesse registro — do sensível, do local, do possível — que as marcas podem (e devem) atuar. Construir futuros sustentáveis no Brasil passa por reconhecer outras formas de saber, outros repertórios de cuidado, outras estéticas.
Com a COP30 acontecendo em Belém, em 2025, o Brasil será o centro das atenções climáticas do mundo. Mas há um risco: o de que a discussão se mantenha nos salões refrigerados, nos mesmos fóruns, nos mesmos idiomas, distante da vida real da maioria da população brasileira. As marcas têm, aqui, uma oportunidade rara: de transformar esse holofote em canal. Canal de escuta, de visibilidade, de criação de pontes entre o técnico e o cotidiano.

É preciso lembrar que, para cada termo técnico usado numa apresentação corporativa, existe uma prática social equivalente que pode (e deve) ser reconhecida como parte da solução. Reciclar é mais do que separar o lixo: é manter a economia informal viva. Reduzir emissão é também repensar a malha logística, o acesso ao transporte, a ocupação urbana. Traduzir essas relações é papel central de quem constrói marcas. E não há branding possível sem essa tradução cultural.
Se o branding é uma tecnologia de imaginação social, então ele também tem o dever de imaginar futuros que caibam no Brasil. Com todas as suas contradições, urgências e belezas.
Branding com chão, não só com pauta
Talvez o primeiro passo para pensar marcas sustentáveis no Brasil seja abandonar a ideia de que sustentabilidade é um pacote pronto, universal, que só precisa ser “tropicalizado”. A floresta não precisa de tradução. O sertão, a periferia, a quebrada, a favela já praticam sustentabilidade — ainda que não com esse nome.
Marcas que quiserem ser parte do futuro precisam reaprender a escutar o presente. E isso envolve reconhecer que o Brasil não é só biodiversidade. É biodisponibilidade: de cuidado, de vínculo, de criação. O que falta não é narrativa, é disposição pra encarar a complexidade.
Pensar marcas no Brasil de hoje exige que os estrategistas conheçam profundamente as tensões que moldam nossa relação com o meio ambiente: as desigualdades de acesso, os saberes populares, os limites do consumo consciente, os riscos do greenwashing. É preciso estudar bioeconomia, justiça ambiental, colonialismo climático. E, principalmente, aprender a desconfiar dos frameworks prontos. Será que você consegue distinguir boa intenção e transformações efetivas de greenwashing? Será que você, como estrategista de marca, já não ajudou a reforçar comportamentos e discursos que mais afastam do que juntam? Qual nosso papel nisso?
Aqui na Compadre , a gente acredita que não há branding relevante se ele não for enraizado. E, no Brasil, enraizar-se é aceitar que as soluções não virão só de fora, nem só de cima. É entender que uma marca só pode ser sustentável quando é, antes de tudo, real: feita a partir da terra onde pisa, das pessoas com quem conversa e dos futuros que decide construir.
Talvez o papel das marcas não seja ensinar o que é ser sustentável, mas aprender com quem já vive isso — não por opção estética, mas por necessidade ancestral.
Se o branding quiser fazer parte dessa história, vai precisar tirar o sapato, pisar na terra e aceitar que o Brasil é, acima de tudo, solo fértil.




