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A grande família brasileira... papai, mamãe, titia?

A grande família brasileira... papai, mamãe, titia?

Será que a gente entende o que a família significa pro brasileiro?

POR

João Raia

·

8 min

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Todo mundo já ouviu falar do mito de Narciso, né? O cara que, amaldiçoado por Nêmesis, acaba se apaixonando pelo próprio reflexo - e, incapaz de se mover, morre ali, plantado, vendo sempre a mesma coisa: ele mesmo. O mito de Narciso costuma ser lido como uma história sobre vaidade e egoísmo. Mas, em uma conversa que tivemos esses dias, ele apareceu de outro jeito que nos ajuda a pensar um pouco alguns aspectos de brasilidade: como metáfora da miopia. Narciso não está encantado apenas consigo mesmo, fascinado com sua beleza... mas também preso a uma imagem que não muda. Ele fica ali, parado, olhando para a mesma imagem refletida na água: sempre igual. Familiar. Um reflexo intacto, estável, "belo". Reconhecível. E talvez o problema não seja ele gostar do que vê, mas não conseguir ver nada além daquilo.

Talvez seja isso que aconteça com muita frequência quando o mercado olha para o Brasil. A gente observa, analisa, descreve… mas será que está mesmo enxergando? Ou está só repetindo o reflexo da própria bolha, nos apaixonando por uma ideia de como as coisas deveriam ser?

Muitas vezes, estamos apenas reafirmando a nossa própria leitura. Confundindo repertório com compreensão. Conceito com comportamento. E tratando temas centrais da vida brasileira como se fossem óbvios demais para merecer investigação profunda. Família é um bom exemplo disso.

Todo mundo acha que sabe o que é família. Todo mundo carrega uma imagem pronta, construída por muuuuito tempo, com muuuuita propaganda de margarina. Durante anos, nosso ideal foi um casal hétero, branco, feliz, com dois filhos (um menino e uma menina, de preferência) — e, de bônus, um cachorro brincalhão. (Vale lembrar que até as próprias margarinas já começaram a desconstruir essa imagem.) Ou, como resumiriam os Titãs: “Família, família, papai, mamãe, titia, almoça junto todo dia, nunca perde essa mania”.

Ainda se pensa muito em família como um lugar exclusivamente de afeto, carinho, amor e alegria. E justamente por isso, pouca gente se pergunta se essa ideia ainda faz sentido — ou se ela é apenas um reflexo repetido dentro da mesma bolha social, cultural e econômica. Mas, se você já viveu um Natal tipicamente brasileiro, há de convir: família por aqui também é sinônimo de muvuca, bagunça, emoções pouco contidas. Diante disso, fica a pergunta: que tipo de família estamos representando e levando em conta ao criar marcas?

Conteúdo do artigo

Essa é a família brasileira que você imagina?

No Brasil real, vale lembrar, família não é um modelo estático. É um eixo de organização da vida. Um sistema vivo de apoio, decisão, cuidado, e pertencimento. Mas também de caos e confusão.

Como tantas outras contradições que estruturam o jeito brasileiro de viver, a família aqui é afeto atravessado por obrigação. Amor que anda junto com cobrança, expectativa, responsabilidade e, muitas vezes, culpa. Não é só colo, é peso também. E talvez seja exatamente isso que explique sua centralidade: a família organiza a vida não apenas pelo cuidado, mas pelo compromisso. É onde se acolhe, mas também onde se decide, se negocia, se adia e se sustenta. No Brasil, família não é só onde a gente se sente protegido: é onde a vida, de fato, acontece.

Por isso, é fundamental pensar família não como modelo estético. Não é pai, mãe, filhos e uma variação visual disso. Não é estrutura fixa. O trabalho do estrategista de marca não é apenas atualizar essa imagem para “caber mais gente”. Família, no Brasil, é comportamento e ignorar essa ambivalência é cair numa leitura açucarada que não se sustenta na prática.

A Pesquisa Brasil no Espelho (que a gente tem falado bastante ultimamente aqui) ajuda a reforçar isso: a família segue sendo um dos principais eixos de segurança emocional, apoio e decisão na vida do brasileiro. Não como ideal abstrato, mas como base concreta.

Quando perguntados sobre o que é mais importante na vida, família aparece no topo, disputando diretamente com saúde e bem-estar. 96% dos brasileiros concordam que família é a coisa mais importante da vida, 91% dizem que um dos principais objetivos é dar orgulho aos pais e 89% afirmam que as decisões que tomam são pensadas, antes de tudo, a partir da família.

Mais do que isso: 80% entendem família como quem se pode contar e confiar, mesmo sem laço de sangue, o que reforça a ideia de família como comportamento e rede, não como modelo fechado. Quando olhamos para os sonhos, o dado se repete: ver a família feliz aparece como o principal desejo do brasileiro, à frente de conquistas materiais, e ganha ainda mais peso entre quem tem maior acesso à educação. E talvez o dado mais revelador para quem insiste em tratar família como estrutura seja este: 90% dos brasileiros dizem que o que define família é o amor, independentemente do modelo, enquanto 88% defendem a importância de preservar costumes e tradições de geração em geração — mostrando que, no Brasil, tradição e transformação convivem sem contradição.

Vamos lembrar: no Brasil, o “eu” quase nunca opera sozinho. Pra gente, a unidade mínima não é o indivíduo, mas o grupo. Isso muda tudo quando a gente fala de consumo. Aqui, comprar raramente é um ato solitário. As decisões passam pela mãe, pela avó, pelo parceiro, pelo grupo, pela família. As decisões mais difíceis - mudar de cidade, aceitar um trabalho pior agora, adiar um sonho - quase sempre atravessam esse campo de tensão familiar, onde desejo individual e compromisso coletivo se chocam o tempo todo. O consumo é relacional.

Também é na família que o consumo se herda. Marcas não entram na vida do brasileiro do zero; elas chegam carregadas de memória. “Isso sempre teve em casa”, “minha mãe sempre usou essa marca, então eu compro ela”, “meu pai confiava”. Existe uma repetição silenciosa de hábitos que atravessa gerações e que explica por que algumas marcas resistem por décadas enquanto outras nunca criam raiz.

Talvez por isso seja tão difícil medir família com as ferramentas tradicionais. Pesquisa pergunta opinião individual; família opera no combinado implícito. Persona organiza comportamento em caixinhas; família bagunça tudo. E quando tentamos importar modelos estrangeiros para entender essa dinâmica, a miopia só aumenta. Em contextos mais individualistas, família é núcleo. No Brasil, ela é rede.

Algumas marcas já fizeram bem esse trabalho: Electrolux, Natura, O Boticário, Brastemp, Burger King, Dove já foram além dos aspectos físicos da representação de família tradicional. Quais outras você lembra?

Família virou um território complexo em branding: qualquer tentativa de representação parece correr o risco de soar clichê, excludente, conservadora ou forçada. O medo de errar paralisa, e o resultado costuma ser a escolha pelo caminho mais seguro, que, quase sempre, é o mais genérico. Só que o problema não está em representar família. Está em tentar representá-la só como imagem, quando o que precisaria ser entendido é o comportamento.

E talvez seja aqui que o Narciso nos ajude de verdade.

Muita gente segue olhando para o mesmo reflexo: a própria experiência, o próprio repertório, o mesmo recorte social. A partir disso, constroem ideias de família, de consumo e de comportamento que fazem sentido dentro da água, mas não fora dela. Quem insiste em olhar com lentes limitadas corre o risco de repetir o erro de Narciso: confundir uma imagem estável com a realidade viva e perder de vista o que, de fato, organiza escolhas, desejos e decisões no país.

Branding, no Brasil, pede mais do que reconhecimento rápido. Pede deslocamento. Pede sair da própria bolha. Pede enxergar que família não é um tema “resolvido”, nem um recurso narrativo fácil: é uma infraestrutura cultural viva, que organiza escolhas, relações e desejos.

Talvez o maior risco para quem trabalha com branding no Brasil não seja errar o tom, o casting ou a estética. Seja continuar olhando para o mesmo reflexo confortável e chamando isso de leitura cultural. Enquanto família seguir sendo tratada como imagem, e não como infraestrutura viva da vida brasileira, as marcas vão continuar falando mesmices, mesmo quando parecem modernas e corretas. O Brasil real não está em um só ângulo do espelho. Está fora dele. E ver exige mais do que repertório: exige deslocamento, escuta e coragem para admitir que aquilo que a gente achava que sabia… talvez seja somente um reflexo míope.