Como fugir da mesmice de IA mergulhando na vida real
POR
João Raia
·
7 min
Uma vez me perguntaram o que faz uma marca parecer real.
Fiquei com isso martelando na cabeça por dias. Porque a resposta fácil é dizer que marcas reais são aquelas que escutam, que se importam, que têm propósito. Mas tudo isso já foi falado, repetido, reembalado — e virando commodity. Se a gente parar pra pensar com calma, talvez o que realmente torne uma marca real seja a sua capacidade de traduzir o mundo de quem consome ela. E traduzir com contexto, não com dicionário.
É aí que entra o banal.
Sim, o banal. Aquelas pequenas coisas onde mora a alma brasileira. Aquilo que passa "batido" no dia a dia. O bilhete da mãe colado na geladeira. O cheiro de cebola e alho refogado pela manhã (não importa a hora, sempre vai ter alguém cozinhando em algum lugar perto de casa, né?). A missa no domingo. O gosto duvidoso de produtos que faziam parte da nossa infância. A gambiarra com durex. As expressões que só fazem sentido aqui. O "OPA!" pra estranhos na rua pra dar um bom dia. A piada pronta que surge da tragédia cotidiana. O jeito que o tio fala “coisado” pra tudo. A conversa que começa com “não repara na bagunça”. O aviso da vizinha de que vai chover. As gambiarras. Os rituais. O improviso. (E, sério, o que mais tem por aí é conteúdo que é produzido e que refletem esse dia a dia da brasilidade).
Coisa que a IA não entende.
A gente anda falando muito sobre inteligência artificial. Muito mesmo. E é justo. Porque, sim, ela tem acelerado processos, otimizado tarefas, ampliado possibilidades. Só que junto dessa eficiência e velocidade toda vem uma armadilha: a IA explica; só que a gente precisa sentir. E se tem uma coisa que é, de fato uma brasilidade importante, é que o brasileiro sente, mesmo que no fundo não se explique. Como diria Chicó, pra muita coisa o "não sei, só sei que foi assim" é traço fundamental.

"Não sei, só sei que foi assim"
E todo mundo já sabe: a criação por IA costuma vir da média. Ela busca padrões, cruza dados, reproduz lógica. Funciona bem pra entregar eficiência, mas falta uma coisa que não tem no algoritmo: textura emocional. Aquela contradição bonita e desajeitada que faz uma história ser memorável, uma marca ser próxima, uma frase grudar. E mais do que isso: as chances da IA entregar algo estereotipado, plástico, desconectado da realidade das pessoas são enormes. Por isso é tão urgente o papel de estrategistas que fuçam, que observam, que convivem. Gente que conhece nosso jeito de ser e de sentir.
O brasileiro, por exemplo, é um povo que gosta de dizer sem dizer. De rir do trágico. De nomear o caos com ironia. A gente traduz saudade como quem descreve um afeto sem corpo. A gente é bom de metáfora. De gíria. De apelido. De sinal.
Vamos combinar que tem um abismo entre dizer “família é importante” e descrever o momento em que alguém chega em casa cansado e encontra uma marmita com o nome escrito na tampa: “filho, não esquece de comer”. A IA gera o primeiro. A gente vive o segundo.
Outro dia, vi um estudo dizendo que 28% da população brasileira vive em cidades médias. Ou seja, se você como estrategista de marca pensa que a "representatividade" que sua marca deve ter é somente o que se vê em capitais como Rio e São Paulo... tem algo errado. O Brasil não tá só nas metrópoles nem nas campanhas feitas com sotaque neutro e estúdio. A brasilidade tá nas casas com três gerações morando junto. Nos bairros onde o carro é símbolo de liberdade pra muita gente. Nas feiras. Nas igrejas. Nas músicas da rádio local. Nas festas da padroeira. No canal do YouTube feito no celular.
Tem um fenômeno curioso que se conecta muito com essa ideia do banal: a gente gosta de se ver representado. Quando uma plataforma de streaming lança uma série nova que é sobre a gente, ela bomba (vide os últimos sucessos de Caramelo, Tremembé, Beleza Fatal, etc).
E enquanto isso, muitas marcas ainda acham que surfar a onda de sucesso globais é só o que vai torná-las relevantes. Usam Wandinha na campanha de refrigerante quando poderiam usar o algo que fosse mais "coisa nossa". Gastam uma fortuna em licenciamento internacional quando poderiam apoiar um artista da quebrada que tá fazendo um trampo original, vivo, real.
A alma brasileira não tá necessariamente nos grandes ícones. Ela tá no banal local. E manter isso no centro é talvez o maior desafio criativo do nosso tempo.
Não é só sobre ser “mais humano”. É sobre ser brasileiro.
Porque em tempos de IA, muita gente vai repetir que precisamos preservar o toque humano. Mas se for pra manter um “humano genérico”, feito de clichês globais, de nada adianta. A potência da criação está no que é culturalmente específico. No que carrega sotaque. Gosto. Memória. Contradição. E isso, por definição, é o oposto do que a IA entrega quando opera no piloto automático.

E aí entra o papel do processo criativo e das decisões que nós tomamos enquanto construímos marcas.
Falar de brasilidade não é pintar tudo de verde e amarelo ou botar um pandeiro na trilha. É tomar decisões que consigam evidenciar o nosso banal. É escolher um casting que represente quem realmente consome sua marca. É optar por uma palavra que só faz sentido em português brasileiro. É gravar com um cineasta local em vez de importar um gringo. É dar espaço pra vozes que vivem o território que a marca quer habitar.
A brasilidade acontece no detalhe: no figurino, no sotaque, na referência cultural que só quem é daqui entende. Ela não é uma camada que se coloca por cima — é uma escolha que atravessa o processo. Se o caminho criativo ignora isso, o resultado pode até ser bonito… mas vai soar vazio.
Foi por isso que a campanha do candidato Zohran Mamdani, em Nova York, virou um caso de estudo exatamente por isso (sim, apesar da gente amar falar de brasilidade, a gente tá de olho o que acontece em todo canto!). Porque cada pôster era feito com o sotaque visual do bairro, com as cores do metrô, com o jeito de comunicar que o povo já conhecia. Era novo, mas era familiar. É por isso que o novo álbum da Rosalía faz a gente repensar o a gente espera de uma cantora pop. Ao trazer instrumentais, fugir da IA, se perder no processo e fugir da mesmice, ela entrega algo irreverente e difícil de ser copiado. E talvez esse seja o caminho: sair do genérico sem perder o afeto do cotidiano.

É por isso que me inquieta ver como boa parte do branding hoje se rende ao mais do mesmo. A IA virou a solução rápida pra tudo. Ela performa, entrega, escala. Mas ela também empacota, dilui e repete.
E sentir exige processo. Exige rua. Exige tempo. Exige referências que vêm da vida e da rua. Sentir exige que a marca se envolva. Que escute. Que pise com respeito. Que construa junto. Que olhe pro banal não como resto, mas como riqueza simbólica.
Pra mim, esse é o papel das marcas agora: traduzir contextos de verdade, não gerar textos genéricos. Criar a partir do chão que pisa. Sentir antes de explicar. Assumir que o Brasil não é um só. Que ele é cheio de sotaques, cheiros, crenças, hábitos, zonas de sombra e beleza.
Marcas que só usam IA pra parecerem modernas vão cair na armadilha do genérico. Mas marcas que usam a IA como ferramenta sem perder de vista que a vida real e banal ainda são a nossa melhor ferramenta.
A IA pode dizer que o amor é importante. Mas só quem viveu sabe o que é ouvir: “leva um casaquinho”.




