Como o que é popular ainda gera medo e admiração
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João Raia
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7 min
Semana passada, a não ser que você estivesse morando embaixo de uma pedra, você deve ter visto: todo mundo falando sobre ovos. E eu vi uma série de posts exaltando a campanha do Canva. “Incrível”, “engraçada”, “brilhante”, “gostaria de ter feito”. E aí me bateu uma pergunta incômoda: se todo mundo admira uma campanha assim, por que quase ninguém tem coragem de fazer algo parecido?

O que é, afinal, o popular no Brasil?
Que conversas se têm no salão, no boteco, na fila do SUS, no grupo da família? Que estética é essa que parece bagunça mas faz sentido pra milhões? Que tipo de humor, de crença, de afeto se compartilha no cotidiano? Uma vez, um professor me disse que o melhor laboratório pra qualquer criativo era pegar um ônibus lotado às seis da tarde. Ouvir, observar, respirar a vida real. É lá que o Brasil acontece, com toda sua intensidade, contradição e verdade.
Essa newsletter não é mais uma análise com “5 lições da campanha do Canva”. O que nos interessa aqui não é a fórmula, é a pergunta: por que o popular ainda é tão mal interpretado pelas marcas? Por que ele gera aplausos na teoria, mas desconforto na prática?
Porque ser popular exige mais do que linguagem: exige presença. Exige deixar de falar sobre e começar a falar com. Exige saber o nome da Gracyanne, rir de um meme de 2014, entender por que alguém come 40 ovos por dia e por que isso importa. Ser popular no Brasil é entender que as conversas não acontecem no racional. Elas são oralidade, absurdo, performance emocional, e não necessariamente batem palmas pra campanhas mega emocionais e lindas, feitas pra colocar Cannes em lágrimas.No fundo, acho que ser popular no Brasil dá trabalho.
Popular de verdade mesmo, não no sentido de “viral”, mas no sentido de traduzir a cultura do povo, a fala da rua, a estética do boteco, a bagunça criativa que é o Brasil real. O Canva foi lá e fez: o humor não era só piada. Era ponte com o que a gente tem de mais brasileiro - era proposta. E, claro, a gente super poderia ter visto uma campanha parecida com as da gringa, falando dos benefícios funcionais do produto. Ou até mesmo uma tradução diferente dessa campanha: buscar histórias inspiradoras de brasileiros que mudaram a sua vida, com seus negócios - e mostrar como o Canva poderia ter ajudado eles (aliás, não sei se vocês sabem, mas o Google fez exatamente isso - dá uma olhadinha aqui). E poderia até ser bonito e inspirador...mas não seria tão memorável!
E não tem problema se a sua referência inicial for de fora. A gente aqui na Compadre ama uma boa referência da gringa. Mas ela precisa passar por um processo antropofágico. Precisa virar feijoada. Porque copiar é fácil. Difícil é traduzir. E é esse o trabalho que importa: não aplicar fórmula pronta, mas devorar com método. É pegar um insight da Apple, misturar com a estética do mercadinho do bairro, temperar com a lógica da gambiarra e servir algo que faça sentido pra quem vive no Brasil real.

A gente tem várias marcas que já usaram bem do que é ser popular no Brasil: Havaianas e suas icônicas tiradas nas celebridades, provando que "todo mundo" usa e até os artistas são gente como a gente (o que reflete muito um jeito nosso informal de ser). Duolingo, com a sua personalidade cronicamente online (aproveitando também desse comportamento brasileiro) pra deixar tudo mais leve e divertido. Além de outras, em vários segmentos, como Guaraná, Posto Ipiranga, Brahma, etc... Ah, mas então ser popular significa ser bem-humorado, fazer gracinha? Nem sempre. A Natura sempre trouxe uma estética linda e bem acabada, mas que reflete muito uma parte do nosso jeito de ser - simples, sinestésico, conectado à natureza.
O problema é que o popular ainda sofre preconceito. Tem marca que diz que quer se conectar com um "Brasil profundo"(e pausa aqui pro ranço da ideia do Brasil Profundo - porque ela traz a lógica de que existe um centro e um profundo, inexplorado...) mas na prática só aceita o Brasil filtrado, limpinho, pasteurizado.
O design que vale é o de uma referência rebuscada, não o da loja de celular com 8 banners piscando. A marca quer “falar com todo mundo”, mas tem pavor de "parecer povão". E o resultado é branding insosso, branding de fórmula, branding de medo.
No fundo, a gente confunde autenticidade com assepsia. Acredita que pra ser respeitada, uma marca precisa parecer europeia quando, na verdade, o que o brasileiro reconhece é outra coisa. É o ruído. É a intimidade rápida. É a dramaticidade cotidiana que transforma qualquer história em novela. É a estética de vida real: popular de fato.
Vamos insistir em uma coisa: ser popular exige chão. Exige largar o manifesto pronto e ouvir mais as conversas do bar ou as do ônibus lotado, da feira, da fila de espera, da rua. O que talvez falte admitir é que ser popular é, antes de tudo, um ato de humildade. De entender que o sucesso da campanha da Gracyanne não tá só na piada: tá na leitura fina de como o brasileiro pensa, ri, compartilha, vive.
Semana passada, pra além da campanha do Canva, uma outra coisa mais interessante aconteceu e quase ninguém falou ou se debruçou sobre: o cientista político Felipe Nunes lançou o livro Brasil no Espelho, resultado de uma pesquisa com quase 10 mil pessoas, espalhadas por centenas de municípios, que busca mapear quem somos, o que pensamos, como mudamos na última década.

No livro, ele nos obriga a encarar o que somos: um país feito de fé, inseguranças, contradições profundas, de conservadorismos, mas também de sonhos, orgulho e desejo de existir como somos. É uma ótima chance de começar a mergulhar mais e mais no que é o brasileiro para além dos moodboards e pesquisas assépticas que rolam na Faria Lima. (Ah, o livro veio de uma pesquisa, que pode ser vista aqui também.)
E é isso que a gente vem falando aqui na Compadre : o Brasil é contraditório, intenso, oral, improvisado, afetivo, híbrido. (Se você ainda não viu as edições dos sinais de brasilidade não óbvios que fizemos por aqui, recomendo muitíssimo. Elas estão aqui e aqui). E construir marcas nesse contexto exige mais do que seguir fórmula. Exige aceitar que o branding, por aqui, é feito de bagunça com propósito. De caos com coerência. De meme com método.
E isso, meu amigo, dá trabalho.




